Desabafo
Tenho sido, desde
sempre, um cidadão cumpridor. Comecei a trabalhar novo, com 17 anos, tendo
desde essa data, descontado todas as obrigações fiscais que me foram sendo
impostas, quer as relativas ao apoio social (na
altura chamado desconto para a caixa) como as fiscais .(imposto complementar e ulteriores)
Vi-me obrigado, a
partir dessa idade, a conciliar o trabalho diurno e os estudos nocturnos. Tive
de interromper ambos, não por vontade própria, mas, de novo, como cidadão
cumpridor, executando o meu dever militar. (não
fosse casado na altura e teria feito como muitos colegas meus, fugindo do país)
Foi uma experiência que
durou 47 meses, dos quais 27 em teatro de guerra em Angola, sempre como
operacional. Que me recorde, não fui sujeito, nesse período, a obrigações
fiscais. Paguei com suficientes mazelas por lá colhidas, que de sobremaneira hoje, gravosamente me atormentam.
Assim, poderei dizer
que regressei, algo “escangalhado”, mas inteiro, tendo retomado as minhas
carreiras, profissional e académica.
Após este intróito
enquanto jovem, sumarizo que hoje com 70
anos, continuei sempre a ser um cidadão cumpridor (mesmo quando trabalhei e estudei fora do país ou trabalhei como
empresário, ou ainda como consultor a recibos-verdes) descontando, ano, após ano ─ magnanimamente diria ─ tudo o que
me foi exigido, para as diferentes entidades governamentais, encontrando-me
presentemente na situação de reformado, após 43 anos de actividade
ininterrupta. Fui durante todos esses anos um contribuinte liquido, pois podem
contar-se pelos dedos as baixas médicas que utilizei.
Estarei assim, na
situação de muitas centenas de milhar de cidadãos, que, tal como eu, sempre cumpriram as suas obrigações fiscais, tendo como legitima expectativa e
objectivo, poderem viver, na velhice, com a dignidade pressupostamente
inerente aos descontos que efectuaram para esse efeito durante toda a sua
vida activa, assegurando uma qualidade de vida se não igual, pelo menos idêntica à que usufruiram enquanto cidadãos activos.
Como sabem, nada disso
sucede hoje em dia.
Somos hoje confrontados
com a recorrente ameaça de nos usurparem mais uma fatia das nossas reformas,
sempre sujeitos ás incógnitas quanto à sua dimensão ou data da sua aplicação. São
conhecidos os argumentos dos políticos governantes justificando a necessidade
destas usurpações, que não convencem ninguém.
De facto, dizer que tirar
aos que mais recebem para distribuir pelos que mais precisam é, no mínimo,
revelador de um cinismo atroz, mais propriamente uma mentira impudente e
monstruosa. Trata-se além disso, de uma argumentação duplamente falaciosa, pois
quando se reduz o rendimento dos que mais têm e também dos que mais precisam ou
menos recebem, deixa de existir base para o próprio argumento, transformando a
sua aplicação factual perfeitamente axiomática.
Quer os políticos
queiram quer não, os sucessivos cortes nos rendimentos dos cidadãos, aplicados
desde 2011 com especial virulência sobre os reformados e os funcionários
públicos ─ inicialmente rotulados como provisórios, conjunturais portanto ─ não
passaram de meras medidas práticas (facilmente
obtidas numa folha de Excel) para aplicação imediata, de caracter putativo,
sem qualquer esforço intelectual; fundamentalmente para tapar um buraco orçamental,
nada mais.
Deste modo, deliberada
e inexoravelmente se foram empurrando os cidadãos para a pobreza e indigência.
Pior, quando se anuncia que para equilibrar as contas do Estado se terá que
manter esse estado de coisas por mais 20 ou 30 anos, está-se a revelar
claramente que o estado de pobreza deixou de ser conjuntural para se
transformar em estrutural.
Ao pretenderem agora
transformar esses cortes em definitivos, não é mais do que seguir uma linha
ideológica clara, profundamente dogmática, autista, tendo como último objectivo, eliminar e punir exemplarmente o que foi considerado “viver acima das possibilidades”. Mais honesto seria debater
este assunto, tendo em vista alcançar plataformas futuras razoáveis, claras ao
entendimento geral, através de um debate aberto, consequente.
Convenhamos que a chamada “sustentabilidade” das
pensões não é matéria fácil de resolver. Que me recorde, a última abordagem
estruturalmente séria e honesta a este tema foi levada a cabo pela reforma
introduzida pelo Vieira da Silva. De facto, desde 2008 que começou a ser
aplicado o "factor de sustentabilidade" que na prática implica que a
idade da reforma (ou o corte no valor das pensões) variasse em função do
aumento da esperança média de vida.
À excepção da recente aplicação do aumento da
idade da reforma, todo o restante conteúdo da reforma ficou liminarmente suspensa
desde a posse deste governo. Continua portanto a ser um problema que tem de ser
resolvido, encarado, estudado e discutido com proficiência e independência
intelectual, com isenção, livre de interesses partidocráticos, sobretudo como
presentemente, em que eleições se avizinham.
A recente proposta, ontem vinda a público, (mais uma vez de forma atabalhoada e
nublosa) em indexar o valor das reformas ao crescimento económico e à
demografia, faz algum sentido, podendo e devendo ser a base de estudos mais
aprofundados, sérios, evitando a demagogia ideológica, por outras palavras,
evitar legislar nos bastidores e à pressa, como se tem feito, só para tapar
buracos.
Este tipo de indexação é já hoje praticado, como
se sabe, em países como a Espanha e a Suécia. Haverá que, aproveitando essas
experiências, introduzir-lhes melhorias substantivas, por exemplo ao nível de
plafonamentos, quer máximos, quer mínimos. Isso seria particularmente útil e
entendível, quando se verificasse uma inflação negativa ou uma quebra do PIB o
que naturalmente iria implicar uma redução no valor das pensões, ou,
contrariamente, a um benefício, sempre que aqueles factores fossem positivos.
Claro que o busílis estará em conseguir
parametrizar todos os níveis e factores a aplicar, mas acredito que tudo isso,
após estudo, discussão aberta e ponderação adequada, seria entendível por todos
e salvaguardaria, temporalmente, a sustentabilidade da Segurança Social. Não é
trabalho para ser feito à pressa, seja por razões eleitorais, seja por razões
de ajuste orçamental.
Infelizmente, como é, e tem sido evidente, a política
deste governo, além de não resolver os problemas de fundo da nossa economia,
tem revelado e aplicado políticas de choque, desproporcionadas, com implicações
socialmente gravosas, com evidentes resultados fracturantes que poderão
redundar em conflitos violentos até agora sustidos, mas que começam a
demonstrar contornos de tendência explosiva.
Tenhamos esperança que
o bom senso se sobreponha aos dogmas ideológicos ou interesses circunstanciais
da partidocracia. Para isso temos de manter a massa critica suficiente por
forma a evitar males maiores. Trata-se de defender a nossa cidadania e,
sobretudo, garantir a dos nossos descendentes.
Zé
Ferreira
28-03-2014